Não cremos na dor sem Deus
* Ronaldo Lidório
Sempre nos lembramos de Atos como o livro que descreve um Deus que intervém sobrenaturalmente. São línguas de fogo sobre os discípulos, coxos andando, demônios exorcizados, anjos socorrendo os apóstolos e até a sombra de Pedro transformada em instrumento de cura.
Mas nem sempre acontecia assim: Estêvão foi martirizado, Paulo preso e açoitado, discípulos fiéis foram mortos ao fio da espada e lançados aos leões. Além da nossa finita lógica e curta compreensão da história, entre milagres e tragédias, o Senhor Jesus era glorificado e a igreja avançava.
A expectativa do povo de Deus é sempre ver a resposta do Senhor em meio ao sofrimento. Todavia, Atos nos mostra uma verdade aplicável ao nosso dia a dia: nem sempre Deus intervém sobrenaturalmente. Ele não deixa de ser o Senhor da situação, mas, em face da tragédia pessoal, somos convidados a compreender que é preciso olhar além da vida e entender que o projeto maior da nossa existência – glorificar a Deus – não pode ser revogado.
O Sofrimento Possível
Em Atos 8, Lucas relata que “levantou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém” (v. 1) e escolhe o termo grego diogmos para definir “perseguição”. Distintamente de efistamai (ataque), a expressãodiogmos está ligada ao sofrimento físico: causar dores, fazer sofrer, punir com sofrimento. A igreja experimentou – de forma violenta – o amargo sofrimento e Lucas descreveu este diogmos: o sepultamento de Estêvão, a prisão dos fiéis e a dispersão. Mas, inspirado, ele vai além. Ao mencionar o martírio de Estêvão (v. 2), Lucas relata que houve um grande “pranto”, usando o termo kopeton, que pode ser lido literalmente como “bater no peito” e indica o sofrimento emocional, a dor da alma, o choro inconformado do coração. Ao lado de diogmos, apresenta um sofrimento físico (fuga, prisões, martírio e espancamentos) e emocional (medo, insegurança, saudade e depressão). O historiador afirma ainda que Saulo “assolava” a igreja (v. 3), utilizando elumeinato. Esse termo – derivado delumaino – aponta para uma assolação (destruição) não apenas física e emocional, mas também espiritual. É o mesmo termo usado em João 10.10, em que lemos que o diabo veio roubar, matar e destruir.
O primeiro relato de Atos 8 é surpreendente: descreve a igreja sofrendo forte ataque físico (diogmos), emocional (kopetos) e espiritual (lumaino). O contexto não centraliza a igreja, mas o ataque a ela perpetrado, o esquema maligno do qual a comunidade de Jesus era alvo, a oposição sobre-humana que atacava o corpo, fazia doer a alma e tentava solapar a fé. A igreja sofria.
O sofrimento permanece entre o povo de Deus hoje. A violência impera na família, vidas são ceifadas em trágicos acidentes, a enfermidade não abandona o corpo, o desemprego e as dívidas tiram o sono, a depressão se abate profusamente sobre a alma e a fé é provada no fogo. Mas a fidelidade do Pai nos mostra que, no mais terrível sofrimento, Ele continua sendo Deus e nunca se ausenta. Mesmo quando silencia, no momento em que preferiríamos um poderoso e miraculoso grito, Ele continua sendo Pai e Senhor. Quando Deus se cala, é preciso olhar além da vida e, em total dependência, crer que Ele é maior do que os homens.
Cantamos um hino em Gana que diz:
Não vivemos para celebrar o sofrimento;
Nem também para chorar;
Mas quando ele vier choraremos;
No sofrimento há Deus;
Não cremos na dor sem Deus,
Não cremos na dor sem Deus.
O Deus Do Impossível.
O outro lado da moeda nos incita a esperar contra a esperança e a crer no Deus dos milagres. Entender o sofrimento como algo possível não implica em perder a expectativa de ver Deus abrir os céus e agir. Geneticamente, na linguagem da fé, nascemos em Cristo com a tendência de crer no impossível.
Voltando a Atos 8, vemos que a igreja sofria pois “foram dispersos pelas regiões de Judéia e Samaria” (v. 1); “Entrementes os que foram dispersos iam por toda parte pregando a palavra” (v. 4). Mesmo no sofrimento, Deus faz a história caminhar para a glória do seu nome e o avanço da sua igreja.
O evangelho sofreu com o martírio de Estêvão, homem cheio do Espírito Santo (v. 2). Caiu um grande líder e incansável pregador, mas Deus levantou Filipe, também cheio do Espírito, que “descendo à cidade de Samaria, anunciava-lhes a Cristo” (v. 5).
Muitos foram arrastados e encarcerados após o grande pranto sobre Estêvão, a igreja se dispersou e a violência assolou famílias inteiras (v. 3). Tristeza e melancolia eram o que se esperava, mas, no fim, “houve grande alegria naquela cidade” (v. 8). Deus faz o impossível no corpo, na alma e na fé do seu povo.
Em nossa vida, Deus nunca será surpreendido. A despeito do possível caos, das inúmeras derrotas, do vazio no coração, da falta de fé, da ausência de respostas, Deus nunca foi e jamais será surpreendido pelo que pode nos roubar a expectativa de um dia sermos felizes novamente. Ele detém o direito autoral de escrever cada capítulo da nossa existência. É soberano e tem o domínio da nossa história, mesmo quando se cala.
Mas Deus não somente se cala. Ele também fala. Por isso, perante qualquer obstáculo, devemos crer que o Deus dos impossíveis pode fazer o impossível acontecer.
Mesmo quando o sofrimento vem, Deus permanece no controle de tudo e, portanto, no controle do nosso sofrimento. Olhar além da vida é olhar para o projeto maior na mente do Senhor, é reconhecer que Deus é maior que o homem, que a sua glória importa mais do que a nossa. Como diz o cântico, não cremos na dor sem Deus.
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